sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Cinco horas da manhã e eu me levantei da cama. Ouvi um estrondo, pareciam tiros. Recebi um beijo ainda deitada e lépida na cama. Não sei se foi verdade ou se foi um sonho bom ou ruim. Estava na hora de levantar,porém meu corpo estava tão pesado e inerte. Ouvi o estrondo outra vez. Meu cachorro latia tanto,mesmo assim eu continuei na cama. Precisaria começar minha maldita rotina, sair , estudar e trabalhar. Observei os meros mortais passando pela rua e pensei que não queria ser exatamente como eles.Talvez eu tivesse sido beijada pela morte, pela dor ou até mesmo por uma simples preguiça momentânea.Em certos devaneios, sentia um instinto animal tão forte dentro de mim como se a mulher não existisse.Resolvi levantar, passei as mãos entre meus cabelos que raramente são soltos.Pensei que se eu saísse de peruca na rua, os transeuntes olhariam pra mim de modo diferenciado.Pensei que se eu mudasse minha escrita ou usasse roupas decotadas , seria mais mulher. Mas eu sou mortal,levantei escovei os dentes e bebi uma caneca de café morna.Senti meu corpo tão cansado como se tivesse nadado numa piscina repleta de ratos. Talvez fosse isso que acontecesse diariamente.Lembrei-me dele. Do homem que eu amo, e lembrei a noite que passei acordada chorando e me sentindo pesadamente beijada pela morte.Pensando no dia que a minha carne foi abatida,foi pisada e feita de trapos humanos.É incrível como não dividir uma narrativa em parágrafos possa fazer alguma diferença. É incrível pensar na humanidade. Sempre existirão mortes,assassinatos,mesmo com tantos recursos para felicidade.Tão curioso que até mesmo o dinheiro me separou do meu grande amor. Meu rosto estava como uma fruta madura,pesado, com olheiras que pareciam cadavéricas.Sim, por um momento me dei contei que eu poderia estar morta e em outra dimensão.Minhas lágrimas estavam sem coesão. Lágrimas, que eu gostaria de ter costurado no peito pra que jamais ousassem a brincar comigo.Meu amor não sabia que eu existia. E tudo começou no dia que eu conheci a irmã dele.Era ano de pré vestibular e me sentia animada para ingressar numa universidade.Malditos aqueles dias intermináveis em que vivi como uma pessoa mortal,por isso hoje sou um cadáver trapo que restou de tudo. Não consigo esboçar sorrisos. Grazieli me apresentou seu estúpido irmão matemático. Eu era imortal até conhecê-lo. Tenho dúvidas até hoje se ele existiu ou não. Faz tanto tempo, já choveu tanto depois que ele se foi.Decidi me converter em busca de um amor cristão. Não sei onde a minha cabeça andava naquele dia. Tomei uma decisão: precisa ser mortal, precisava me converter para a religião.Queria aquela magia dos casais que vão ao cinema e andam de mãos dadas, custou no que custou.Certo dia, minha amiga me convidou até sua casa. Sua mãe era uma tremenda beata, com cabelos tão lisos que fazia questão de demonstrar que iam até a cintura. Seu pai um caipirão medíocre que andava de bicicleta por terras saquaremenses. E lá estava ele: um Fábio, que costumo hoje denominar de fábula.Fui à igreja, fui à casa da Grazy. Sim, eu menti minhas crenças religiosas para viver um grande amor.Vivi dentro de um bolha que parecia um grande clichê. Comecei a frequentar uma igrejinha de meros mortais com crenças após a morte. Vi tantos pastores beatos e sem saber utilizar nossa língua que pensei: são esses os mensageiros da vida eterna?Mudei meu jeito, cortei meus cabelo na altura dos ombros e resolvi não pintá-los mais. Aposentei minhas calças jeans, meu estilo quase roqueira de ser para me tornar uma mera e beata mortal. Comecei a frequentar aquele lugar de tanta gente ignorante e sem nexo.Sim, pensei que o amor deveria ter sacrifícios.Fiquei morta dentro de mim , por um ano. Minha fábula, meu Fábio tão presente, tão meu e tão distante. Frequentava a casa da Grazieli, fiz um pacto de amizade com a família dela e um pacto de amor secreto com seu irmão. Eu o amava sozinha, morria de dor sozinha, me tornava uma mortal sem escrúpulos a cada segundo.Resolvi abandonar as letras que tanto me consolavam e enveredei por um caminho sombrio que me tomaria mais ano de vida para voltar a imortalidade.Virei beata, perdi meus amigos, usava saias de gente mortal. Chorava como mortal e sofria como religiosa. Será que Deus realmente estava me vendo? Disso eu não sei. Só sei que Deus tem senso de humor. E eu o admiro muito por isso. De fazer as coisas do jeito que ele quer e dar leves pisadelas em nosso coração.Como se dissesse: torne-se mortal por alguns segundos e seja um pouco infeliz para saber que eu existo. Foi isso que ele fez.Todas as reuniões religiosas eu comparecia.E quando a minha fábula, como assim recordo dele, não sorria pra mim eu chorava e era beijada todos os dias pela morte.Durante um ano, estudei e queria ter começado um curso de letras logo de cara.Me tornei mortal mais uma vez, imitei a minha fábula. Tentei a matemática. Passei de primeira no vestibular. Por que? Porque pensei que se escolhesse a mesma profissão dele, seria mortal, porém seria amada. Aos poucos de Fábio, ele se tornou fábula. E, quando eu estava me tornando imortal, contei a ele a minha conquista. Esperei um abraço, um beijo, um eu te amo. Mas ele só bateu no meu ombro.Mandei um email, uma declaração de amor fria. Ele nunca me amou, me respondeu de modo ríspido, meu mundo desabou no dia do meu aniversário de dezoito anos.Morri por alguns dias,fiquei sem comer, magra abatida.Até que a minha mãe descobriu que estava com um câncer de mama. Morri mais uma vez, fiquei em pedaços tão pequenos que até uma formiga poderia carregar.Aquilo me tornou mortal mais uma vez.Morri mais vez em meu leque tão imenso de vidas.Quimioterapia, retirada de um seio. Minha mãe também virou uma mortal, foi beijada pela vida e perdeu os cabelos. Eu estava morta em todos os sentidos da vida. O que eu faria com a matemática? O que eu faria sem a minha fábula? E pior: o que eu faria sem a minha mãe que ameaçava em me deixar? Não sei se foi uma prova de amor, ou se foi pra que os homens não me olhassem por pelo menos um ano.Queria ser imortal mais uma vez. Arranquei minha moldura. Tirei fio a fio. Rapei minhas madeixas lisas e brilhosas. Em parte por solidariedade a minha mãe. Em outra por estar de luto e achar que um grande amor se conquista sendo mortal. Sem cabelos, eu me confinei dentro do meu castelo interior. Morri por um ano sem sair de casa, morria ali todos os dias ao lado da minha mãe. Ela sobreviveu,meu cabelos cresceram, estou na universidade. A fábula desapareceu,meu doce amor não era amor. Era a minha imortalidade saindo . Tudo acabou, mas continuo confinada no meu castelo.

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